sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Nada

por Ju Blasina

Imagem: Federica



Guardo relógios parados

E no silêncio repousa o tic-tac eterno
Guardo calendários antigos
E já desfolhados
Meus dias passam invisíveis

Benditos grilhões metafóricos!
Trago-os sempre comigo
Em segredo

Tento prender-me ao tempo
Ao fechar dos olhos
Vejo o passar dos dias distantes
Latentes, num breve lampejo
A incerteza me congela

Interminável... Suspiro

Temo perder-me no tempo. Só
A ânsia palpitante me remete
À vidas (mal) passadas
E a dor que ancoro ao peito
Tanto aperta que me aporta

Vago neste intrépido mar revolto
Movido ao sabor das dúvidas
Tão salobras

Sem sentido
Vou seguindo
Levado a esmo
Temo por nada
Ser um dia

(Longínquo — Espero)

Ao completar a rota cíclica
E encontrar — triste — certeza:
Nada é tudo

E nada mais é que
O que restou por fim
O que sobrou de mim (?)

Temo por nada

7 comentários:

  1. Ju,
    amei a primeira estrofe:

    "Guardo relógios parados
    E no silêncio repousa o tic-tac eterno
    Guardo calendários antigos
    E já desfolhados
    Meus dias passam invisíveis"

    Tema fascinante
    de que soube falar
    com uma sutileza ímpar...

    A imagem ainda fez da leitura
    algo encantado:
    você sozinha
    a tocar o nada
    com a ponta dos pés...
    Lindo demais!

    Um beijo, querida!

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  2. Obrigado, Renata

    O medo do "Nada" é algo muito presente em meus pensamentos, mas nunca tinha conseguido traduzir-lhe em versos. Ainda bem que ficou sutil, (segundo o teu olhar) caso contrário, correria o risco de ser muito perturbador!
    Isso deve ser um bom sinal...

    Beijinhus

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  3. Eu gostei muito do texto. Ele tem uma linguagem tão sutil, palavras leves, ritmo ameno e agradável. É a passagem de um momento que da forma como é contado podemos vê-lo.
    Entendo que o eu-lírico tenta reviver um fato passado e para no tempo.
    Apenas uma correção gramatical: "à vidas...", não tem crase, teria se o "a" também estivesse no plural. Aí tu escolhes se queres ou não pôr no plural.
    Parabéns! :)

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  4. Estive lendo e relendo esse poema. Hoje, por acaso, tive um "insight" (que palavrinha mais 'anos 90'). Não sei se a poeta estava ou não consciente disso na criação deste texto: trata-se não de um, mas de dois poemas.

    Vejam:

    O nada (1)

    "Guardo relógios parados
    E no silêncio repousa o tic-tac eterno
    Guardo calendários antigos
    E já desfolhados
    Meus dias passam invisíveis

    Tento prender-me ao tempo
    Ao fechar dos olhos
    Vejo o passar dos dias distantes
    Latentes, num breve lampejo
    A incerteza me congela

    Temo perder-me no tempo. Só
    A ânsia palpitante me remete
    À vidas (mal) passadas
    E a dor que ancoro ao peito
    Tanto aperta que me aporta

    Ao completar a rota cíclica
    E encontrar — triste — certeza:
    Nada é tudo"


    O nada (2)

    Benditos grilhões metafóricos!
    Trago-os sempre comigo
    Em segredo

    Interminável... Suspiro

    Vago neste intrépido mar revolto
    Movido ao sabor das dúvidas
    Tão salobras

    Sem sentido
    Vou seguindo
    Levado a esmo
    Temo por nada
    Ser um dia

    (Longínquo — Espero)

    E nada mais é que
    O que restou por fim
    O que sobrou de mim (?)

    Temo por nada"





    Há dois poemas, entrelaçados. Em (1) o eu-poético expõe seu questionamento atual, instantâneo e irrepetível (mas cristalizado em poema) sobre o tempo. No outro (2), o eu-poético organiza o próprio pensamento, em relação ao que está dizendo, como uma fala interna, de 'si-para-si', como que ignorando a presença do interlocutor. No primeiro, temos um vislumbre épico, ainda que fale da intimidade com o tempo e uma construção muito subjetiva de belas metáforas para associar coisas ao tempo. No segundo, um olhar que, ao escapar do lirismo, aproxima-se da espontaneidade do diálogo interno. Se em um há um interlocutor amplo (um "tu" que é toda a humanidade, representada na pessoa do leitor), no outro, esse "tu" existe, mas é um "tu-eu". Arriscaria dizer que, enquanto no primeiro, quem fala é o eu-poético, a pessoa legítima do poema, no segundo, quem fala é o eu social, a personalidade, ou, em termos práticos, a própria poeta. Podemos ainda perceber a diferença de assunto em um e em outro: em (1) o foco é a preocupação com o Tempo - é ele quem determina e que é determinado pelo "tudo"; em (2), a preocupação é com a inexorabilidade do tempo e da (própria) existência ante a não-existência: mesmo o que, supostamente, não existe é suscetível ao tempo.

    É possível notar essa característica, de haver mais de uma "voz" atuando no poema, em não poucos poemas da Ju, uma vez que tende a utilizar um recurso que eu chamaria de "apositivo": intercalar comentários ao poema na íntegra, a uma estrofe, a um verso ou mesmo a uma palavra dentro do verso, dando a ele:
    a) uma explicação
    b) um caráter dúbio - permitindo, na prática, várias leituras - com o uso de palavras entre parênteses

    Neste poema aqui, notei esse diálogo interno/externo, levado às últimas consequências. Se isso é uma ação consciente, denota que a poeta sabe exatamente o que quer dizer e que, friamente, constrói um poema em que onde há "nada", em verdade, há um universo inteiro de possibilidades interpretativas. Se o faz inconscientemente, esse poema se trata de um exemplo do que é o fazer poético: uma atividade em que nem sempre se tem consciência de onde as palavras querem chegar, e que a psiquê está muito mais próxima do eu-lírico do que supomos quando pegamos papel e caneta (ou pomos os dedinhos a tamborilar o teclado).

    Entretanto, esses poemas parciais são inerentes um ao outro. Mesmo que fossem as falas intercaladas de dois "eus" distintos, um estaria incompleto sem o outro - talvez mais o segundo que o primeiro. Desse modo, esse texto, íntegro, tal como é, só acontece e "funciona" se as duas vozes estiverem ali, falando juntas, exatamente como estão.

    Muito bom.

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  5. V.
    Posso dizer que me senti muito bem lida!
    Incluindo as não poucas entrelinhas que sempre uso ou deixo escapar.

    É, tens toda razão eu sempre faço uma espécie de discurso dialético ou dicotomia de pensamentos em meus escritos... é bom entender-se pelo olhar alheio!
    Ainda mais um dos teus, mais atento e perspicaz impossível! Obrigado.

    Só acrescento algo que poucos disseram notar e que foi o "insight" (o que tens contra os anos 80?) para o nascimento destes versos: A morte.

    Acho que resumi no "Nada" aquilo que mas me compele a escrever:

    Dúvidas temerosas sobre o tempo X a morte X o Nada

    Ou seja, posso dizer que o temo que o tempo (ou o passar deste) nos leve a nada... e daí surgiu este poema, numa tacada só (de toda uma madrugada) - um dos que me deixou mais satisfeita, seja por orgulho ou por alívio de expressar tanta angústia de forma inteligível.

    Beijus

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  6. De forma muito inteligível, eu diria. Me identifico muito com esse tema.

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  7. Que bom, afinal é isso o que vale! Ao menos conforme os meus padrões... duvidosos? Com certeza! risos. E boas pitadas de romantismo.

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